Dia 29 - Um beijo de amor
A Felicidade
A felicidade sentava-se todos os dias
no peitoril da janela.
Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas
faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu
próprio nome.
Jorge de Sena
Quando o Filipe era mais pequeno e ainda não tinha irmãos, gozava dos privilégios de neto único em todo o seu esplendor. Eram muitos os fins de semana que vinha passar em casa dos avós e, quando ficava sozinho comigo, entretínhamos-nos a fazer puzzles, a brincar aos dinossauros e a ver desenhos animados na televisão.
Houve uma tarde de sábado, teria o Filipe quatro ou cinco anos, em que eu estava particularmente cansada e adormeci no sofá onde estávamos os dois sentados, para acordar subitamente com sensações estranhas na cara, que logo percebi serem fruto das festinhas e beijinhos que o Filipe me estava a dar. Fiquei surpreendida, enlevada e emocionada, claro.
E também algo perplexa: o que se passaria na cabeça dele, para me estar a fazer festas e a dar beijos na cara? Talvez se lembrasse, ainda, dos dias que eu passava a cuidar dele quando era bebé e, mais tarde, dos passeios que dávamos os dois pelas manhãs das ruas de Oeiras, por entre arvoredo e moradias, eu a empurrar-lhe o carrinho, a conversar com ele e a levá-lo a abraçar as árvores; e, quando já dava os primeiros passos, no centro histórico e na baixa, a levá-lo pela mão junto do quartel dos bombeiros e a deixá-lo tocar nos grandes ti-nó-nis vermelhos lá estacionados.
Não sei se aqueles beijos foram beijos de amor: talvez tivessem sido apenas beijos de felicidade. Mas, se assim foi, chegou, foi mais que suficiente, Filipe, obrigada.