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leitor ideal

leitor ideal

Vivi, desde que nasci até aos meus dezassete anos, no número sessenta da Alameda D. Afonso Henriques, de esquina com a Actor Isidoro, esquina essa que, da infância, viria a marcar toda a minha vida.

O meu pai era o porteiro do prédio, algo que eu não podia esquecer nunca - nem quando recebia uma carta com o endereço "Alameda D. Afonso Henriques, nº 60 - r/c (porteiro)", nem de todas as vezes em que me cruzava com algum inquilino no quase sumptuoso átrio do prédio e tinha de lhe abrir, e fechar, a porta do elevador, diretriz que terei aprendido tácita e implicitamente do meu pai.

Colonialismo, PIDE & Psiquiatria

Era um prédio habitado pela crème de la crème da sociedade lisboeta dos anos sessenta.

Entre os inquilinos, contavam-se, no 2º direito, um "africanista", termo que designava um capitalista com negócios nas colónias; no 2º esquerdo, o espanhol dono duma gigantesca cadeia de fábricas de camisas para homem; no 3º direito funcionava a Inspeção do Ensino Liceal, onde a minha mãe me levava quando ia ao fim da tarde fazer as limpezas - e eu deixava-me ficar na pequena sala de espera a ler sofregamente a "Fagulha" e a "Menina e Moça", duas revistas da Mocidade Portuguesa Feminina que eles recebiam pelo correio - ; no 5º direito morava um diretor de serviço do Hospital Júlio de Matos e, no 5º esquerdo, com a mulher alcoólica e sem filhos, um capitão da PIDE.

Nem direita nem esquerda - o caminho do meio

Aquela esquina era um  marco e uma fronteira: do outro lado subia suavemente a rua Actor Isidoro, com os seus prédios modestos e apagados, habitados por uma classe média-baixa, com a papelaria, a  mercearia, a tasca e a carvoaria e, ao cimo e ao fim do primeiro quarteirão, para além do qual eu não costumava aventurar-me, a pastelaria, onde eu ia às vezes nos domingos à tarde com os meus irmãos comer pastéis de nata e beber sumol de laranja.

Habituada ao convívio com a alta burguesia do nº 60 da D. Afonso Henriques, era aqui que eu me sentia mais estranha, já que, com o tempo,  fui-me habituando às pequenas particularidades dos diversos inquilinos, como o bigode da D. Inocência do 1º direito que me roçava na cara sempre que ela me apanhava a jeito, em frente ao elevador, para me lambuzar com um beijo peganhento, ou os lanches, com chá, no 5º direito, com a mulher do capitão. E como eu lhes admirava as belas e vastas casas, cheias de bibelots requintados e/ou caros!

Com o  tempo fui criando uma relação de fascínio e de repulsa tanto por esse mundo onde estava às vezes mas a que não pertencia, como pelo mundo pequenino, pobre e por vezes quase sórdido, que ficava ao virar da esquina. Assim, a partir dos meus quinze anos toda eu me inclinava para a esquerda: tinha aprendido que, por regra, enquanto os pobres vão chorando todos os dias com razão, os ricos vão arranjando sarna para se coçarem.

Porém, à medida que ia amadurecendo, comecei a ter dúvidas, que se prendem com o que li num texto do meu professor Mingyur Rinpoche - e contra o qual me rebelei veementemente na altura: que o sofrimento é universal e que pobres e ricos sofrem da mesma maneira. Mas depois não pude deixar de me lembrar da manhã em que a inquilina do 7º andar do prédio da esquina em frente se suicidou e eu acordei com o estrondo do corpo dela a embater no chão, tinha eu dez ou onze anos, no começo de mais um dia que se desenrolaria, rotineiramente, entre ricos e pobres, no meu prédio que não era meu, de esquina entre dois mundos.