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leitor ideal

leitor ideal

Eis-me chegada ao último dia deste desafio de escrita - e o desafio de hoje consiste em encontrar uma "metáfora para a vida". Desafio e vida surgem-me, assim, ligados e parece-me que este desafio de escrita e, mais genericamente, o desafio de escrever, constituem, eles próprios, uma adequada metáfora para a vida.

No pain, no gain

Escrever custa (-me). Não é nenhum paraíso, nenhuma terra de leite e mel em que poderia comprazer-me sob as brisas amenas da inspiração, da facilidade  e das certezas. Escrever significa abandonar a "zona de conforto", lutar contra a inércia, arriscar. E lutar comigo própria, qual luta corpo-a-corpo, pela verdade muitas vezes velada, muitas vezes apenas latente, que se encontra no fundo de mim, resgatá-la e trazê-la à luz do dia.

 Abri este blogue, ainda antes de começar o desafio de escrita, com uma referência ao livro "Escrever", de Stephen King e, agora que me aproximo do fim, deixo ficar  algumas palavras desse mesmo livro sobre o enorme desafio que o autor enfrentou quando decidiu voltar a escrever depois do atropelamento que sofrera:

Eu não queria voltar ao trabalho. Tinha muitas dores, não conseguia dobrar o joelho direito e era obrigado a usar um andarilho. Não me imaginava sentado atrás de uma mesa por muito tempo, nem sequer de cadeira de rodas. Por causa da anca esmagada, era uma tortura sentar-me durante mais de quarenta minutos e impossível durante mais de uma hora e um quarto. Além disso, o próprio livro parecia mais intimidante do que nunca - como escreveria eu sobre diálogos e personagens, ou sobre arranjar um agente, quando a coisa mais importante do meu mundo era o intervalo até à próxima dose de oxicodona?

Ao mesmo tempo, sentia que tinha chegado a um daqueles momentos de encruzilhada em que não há alternativas. Eu já tinha enfrentado muitas situações terríveis e a escrita ajudara-me a superá-las - ajudara-me a esquecer-me de mim, pelo menos durante alguns momentos. Talvez ela me ajudasse outra vez. Parecia ridículo pensar que funcionaria, dado o nível de dor e a incapacidade física que eu sentia, mas uma voz no fundo da minha cabeça, ao mesmo tempo paciente e implacável, dizia-me (...) que era chegado o momento. Eu podia desobedecer à voz, mas era muito difícil ignorá-la."

                                                                                       Escrever,  pag. 253

No último ano tenho vindo a passar por uma situação semelhante, mas nem as minhas circunstâncias nem a minha coragem são assim tão radicais. No entanto, a luta e a dor que tive de enfrentar para trazer este desafio a bom termo permitem-me fazer dele uma metáfora para a própria vida, com todas suas dificuldades, mas também com a libertação e a alegria dos desafios superados.

E fazem-me respeitar e amar, mesmo que às vezes não o queira e o faça pelo avesso,   aquela voz no fundo da cabeça, "ao mesmo tempo paciente e implacável", que, dia após dia, uma e outra vez, me traz de volta à vida.

 

 

A Felicidade

A felicidade sentava-se todos os dias

no peitoril da janela.

Tinha feições de menino inconsolável.

Um menino impúbere

ainda sem amor para ninguém,

gostando apenas de demorar as mãos

ou de roçar lentamente o cabelo pelas

faces humanas.

E, como menino que era,

achava um grande mistério no seu

próprio nome.

                                                                                        Jorge de Sena

 

Quando o Filipe era mais pequeno e ainda não tinha irmãos, gozava dos privilégios de neto único em todo o seu esplendor. Eram muitos os fins de semana que vinha passar em casa dos avós e, quando ficava sozinho comigo, entretínhamos-nos a fazer puzzles, a brincar aos dinossauros e a ver desenhos animados na televisão.

Houve uma tarde de sábado, teria o Filipe quatro ou cinco anos, em que eu estava particularmente cansada e adormeci no sofá onde estávamos os dois sentados, para acordar subitamente com sensações estranhas na cara, que logo percebi serem fruto das festinhas e beijinhos que o Filipe me estava a dar. Fiquei surpreendida, enlevada e emocionada, claro.

E também algo perplexa: o que se passaria na cabeça dele, para me estar a fazer festas e a dar beijos na cara? Talvez se lembrasse, ainda, dos dias que eu passava a cuidar dele quando era bebé e, mais tarde, dos passeios que dávamos os dois pelas manhãs das ruas de Oeiras, por entre arvoredo e moradias, eu a empurrar-lhe o carrinho, a  conversar com ele e a levá-lo a abraçar as árvores; e, quando já dava os primeiros passos, no centro histórico e na baixa, a levá-lo pela mão junto do quartel dos bombeiros e a deixá-lo tocar nos grandes ti-nó-nis vermelhos lá estacionados.

Não sei se aqueles beijos foram beijos de amor: talvez tivessem sido apenas beijos de felicidade. Mas, se assim foi, chegou, foi mais que suficiente, Filipe, obrigada.

 

Vivi, desde que nasci até aos meus dezassete anos, no número sessenta da Alameda D. Afonso Henriques, de esquina com a Actor Isidoro, esquina essa que, da infância, viria a marcar toda a minha vida.

O meu pai era o porteiro do prédio, algo que eu não podia esquecer nunca - nem quando recebia uma carta com o endereço "Alameda D. Afonso Henriques, nº 60 - r/c (porteiro)", nem de todas as vezes em que me cruzava com algum inquilino no quase sumptuoso átrio do prédio e tinha de lhe abrir, e fechar, a porta do elevador, diretriz que terei aprendido tácita e implicitamente do meu pai.

Colonialismo, PIDE & Psiquiatria

Era um prédio habitado pela crème de la crème da sociedade lisboeta dos anos sessenta.

Entre os inquilinos, contavam-se, no 2º direito, um "africanista", termo que designava um capitalista com negócios nas colónias; no 2º esquerdo, o espanhol dono duma gigantesca cadeia de fábricas de camisas para homem; no 3º direito funcionava a Inspeção do Ensino Liceal, onde a minha mãe me levava quando ia ao fim da tarde fazer as limpezas - e eu deixava-me ficar na pequena sala de espera a ler sofregamente a "Fagulha" e a "Menina e Moça", duas revistas da Mocidade Portuguesa Feminina que eles recebiam pelo correio - ; no 5º direito morava um diretor de serviço do Hospital Júlio de Matos e, no 5º esquerdo, com a mulher alcoólica e sem filhos, um capitão da PIDE.

Nem direita nem esquerda - o caminho do meio

Aquela esquina era um  marco e uma fronteira: do outro lado subia suavemente a rua Actor Isidoro, com os seus prédios modestos e apagados, habitados por uma classe média-baixa, com a papelaria, a  mercearia, a tasca e a carvoaria e, ao cimo e ao fim do primeiro quarteirão, para além do qual eu não costumava aventurar-me, a pastelaria, onde eu ia às vezes nos domingos à tarde com os meus irmãos comer pastéis de nata e beber sumol de laranja.

Habituada ao convívio com a alta burguesia do nº 60 da D. Afonso Henriques, era aqui que eu me sentia mais estranha, já que, com o tempo,  fui-me habituando às pequenas particularidades dos diversos inquilinos, como o bigode da D. Inocência do 1º direito que me roçava na cara sempre que ela me apanhava a jeito, em frente ao elevador, para me lambuzar com um beijo peganhento, ou os lanches, com chá, no 5º direito, com a mulher do capitão. E como eu lhes admirava as belas e vastas casas, cheias de bibelots requintados e/ou caros!

Com o  tempo fui criando uma relação de fascínio e de repulsa tanto por esse mundo onde estava às vezes mas a que não pertencia, como pelo mundo pequenino, pobre e por vezes quase sórdido, que ficava ao virar da esquina. Assim, a partir dos meus quinze anos toda eu me inclinava para a esquerda: tinha aprendido que, por regra, enquanto os pobres vão chorando todos os dias com razão, os ricos vão arranjando sarna para se coçarem.

Porém, à medida que ia amadurecendo, comecei a ter dúvidas, que se prendem com o que li num texto do meu professor Mingyur Rinpoche - e contra o qual me rebelei veementemente na altura: que o sofrimento é universal e que pobres e ricos sofrem da mesma maneira. Mas depois não pude deixar de me lembrar da manhã em que a inquilina do 7º andar do prédio da esquina em frente se suicidou e eu acordei com o estrondo do corpo dela a embater no chão, tinha eu dez ou onze anos, no começo de mais um dia que se desenrolaria, rotineiramente, entre ricos e pobres, no meu prédio que não era meu, de esquina entre dois mundos.