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leitor ideal

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Naquela manhã, quando saí da cama e me pus a andar pela casa, vi que estava sozinha.

Fui à cozinha e em cima da mesa estava um prato fundo de plástico verde com um resto de corn-flakes e, ao lado, uma maçã mordida, com uma bela casca vermelha. Lembrei-me da Branca-de-Neve e da Bruxa-Má, mas foi apenas uma lembrança súbita e passageira - afinal, a Catarina já tinha doze anos e deixara de se entreter com esse tipo de histórias.

Abri a porta e fui ao alpendre e vi que a bicicleta também tinha desaparecido.

Se não conhecesse tão bem a minha filha teria ficado preocupada. Assim, fiquei só um pouco ansiosa por não saber onde é que ela estava, embora desconfiasse que ela devia ter acordado cedo e, farta de esperar que também eu acordasse, devia ter-se posto a caminho da casa da Carina - a amiga de S.João das Lampas com menos três ou quatro anos e uma sílaba no nome do que ela.

Tomei duche, vesti-me e saí. Fui direita à casa da Carina - e lá estavam as duas a brincar pacificamente, tornando o meu ralhete supérfluo e despropositado.

 

Tínhamos ido só as duas passar alguns dias das férias da Páscoa à casa que chamávamos "do Magoito", por causa da praia, mas que na verdade ficava a alguns quilómetros de distância, em S. João das Lampas, onde afinal passámos a maior parte do tempo porque o tempo não estava de feição  para  banhos. Mas a Catarina aproveitava plenamente esses dias, percorrendo velozmente na  bicicleta vermelha os caminhos que atravessavam os campos.

Mesmo longe da praia sentia-se, estranhamente, a presença do oceano - não o víamos nem ouvíamos, mas sentíamos a sua proximidade numa particular qualidade do ar e sabíamos que estava lá. Eram "magníficos dias atlânticos"  de sol, vento, poucas palavras e muitos gestos partilhados.

Às vezes íamos lanchar ao amplo café central, enormes fatias de bolo de chocolate com nozes. Pelo caminho, demorávamo-nos a ver, em silencio, as lagartixas que apareciam e corriam muito rápidas pelas pedras dos muros, debaixo do sol quente das tardes de verão.

Vivíamos nesses dias uma solidão muito livre, cúmplice e partilhada, de que a maçã mordida e abandonada na mesa da cozinha naquela manhã deserta restou na memória como o mais evidente sinal.

As minhas tardes de domingo têm-se pautado, desde sempre, pelo abandono à preguiça, muito ao jeito daquele tema dos Moody Blues: "Lazy day, Sunday afternoon/Time to put your feet up and watch T.V...."  e por isso tenho uma lembrança bastante vívida das tardes de domingo que escaparam a essa rotina.

Numa delas, teria eu 16 anos, fui desafiada pela Maria João, a minha companheira de aventuras, a assistir a um concerto na Biblioteca Nacional. Não sabia exatamente qual seria o repertório nem quem iria tocar - só sabia que era um concerto de música clássica.

O rapaz do violoncelo

E também hoje não me lembro do que a orquestra tocou.

Era uma orquestra composta por jovens - talvez da Juventude Musical Portuguesa? - e o auditório estava cheio, de jovens e não só.

Pouco depois de começarem a tocar, reparei num rapaz de óculos que tocava violoncelo. Não tinha nada de especial: era mais ou menos da minha idade, talvez um pouco mais velho, e tinha óculos. E reparei que ele também estava a olhar para mim. Enquanto a orquestra ia tocando, o rapaz do violoncelo - não posso  chamar-lhe "violoncelista", seria demasiado adulto e convencional - foi ganhando o direito de habitar um mundo exclusivo e à parte,  em que a música, o nosso olhar e as minhas emoções jogavam um jogo subtilmente emocionante e palpitante de vida.

O concerto acabou e saímos para um crepúsculo de outubro tépido e brilhante. O fumo do cigarro que acendi à saída - estava nos meus primeiros tempos de tabagismo, que muitos anos depois abandonei, e fumava cada cigarro com volúpia - misturava-se com a leve neblina em tons de anil e violeta que se erguia sobre o cheiro agridoce da relva que devia ter sido recentemente cortada.

Eu contemplava aquele horizonte luminoso como quem contempla um futuro empolgante, cheio de música, beleza, experiências e aventuras duma vida plenamente vivida. A doçura única daquela hora era acentuada pela recordação da música que ainda reverberava nos meus ouvidos e no meu peito, onde tudo tinha começado, enquanto  eu não tirava os olhos do rapaz do violoncelo, que não tirava os olhos de mim.

 

O koan

Tradicionalmente, o koan - frase ou pergunta de caráter enigmático e paradoxal, usado em práticas de meditação no budismo zen com o objetivo de dissolver o raciocínio lógico e conceptual, conduzindo o praticante a uma súbita iluminação intuitiva (satori) - é a expressão mais refinada e subtil duma "pergunta intrigante".

Segundo John F. Fisher, em An Analysis of the Koans in the Mu Mon Kwan, embora os koans sejam diferentes entre si, a mensagem é a mesma: "... o caminho para o satori não é através da dependência das palavras, mesmo que sejam as palavras de Buda ou dos Mestres do passado; porém, não devemos rejeitar as palavras, pois, por muito imperfeitas que sejam, constituem o único meio que temos de alcançar a iluminação. Devem usar as palavras e ideias contidas nos koans para alcançar o satori, mas nunca devem confundir os dois."

Alguns exemplos de koans em forma de pergunta

Os koans não são apenas perguntas - podem ser constituídos por uma narrativa, um diálogo ou uma afirmação. Porém, já que estou a tratar de "perguntas intrigantes", deixo aqui alguns exemplos de koan em forma de pergunta:

Batendo as duas mãos uma na outra temos um som. Qual é o som de uma única mão?

Qual é o som do silêncio?

Quem és tu?

Qual era o teu rosto original - aquele que tu possuías antes de nascer?

Também na vida diária nos deparamos com perguntas intrigantes, quais koans  "profanos" que, por vezes, levam anos a responder.

 

Cuidado com as perguntas mais simples - podem ser as mais intrigantes

Se eu perguntar, por exemplo:

O que quero eu da vida?,

a resposta pode dar origem a uma sucessão de outras perguntas, algumas bem difíceis de responder. Se eu responder

Quero ser feliz,

terei de perguntar a seguir o que preciso de fazer para alcançar essa felicidade que desejo. E posso responder que,  para ser feliz, terei de conhecer e aplicar as causas da felicidade - e essa resposta pode dar origem a mais um universo de perguntas.

A vida torna-se, assim, parecida com um conjunto infindável de bonecas russas:  dentro duma pergunta respondida encontra-se outra por responder, e assim sucessivamente, até ficarmos um dia sem perguntas e encontrarmos, no seu lugar, um magnífico espaço vazio e luminoso.

 

 

 

O gesto inspirador dum budista feliz

Yongey Mingyur Rinpoche, a quem já me referi neste blogue, nasceu no Nepal em 1975. É um professor de meditação conhecido mundialmente, com uma experiência pessoal de ataques de ansiedade e de pânico, que duraram por toda a infância; na adolescência, aprendeu a transformar essa experiência através da meditação. Começou a estudar meditação em jovem com o próprio pai, Tulku Urgyen Rinpoche, um respeitado professor budista. Também ainda enquanto criança, começou a interessar-se pela ciência contemporânea e depois de adulto veio a colaborar com neuro-cientistas e psicólogos em projetos de pesquisa que estudam os efeitos da meditação no cérebro e na mente.

Além da sua função de abade de três mosteiros, dirige a Tergar, uma comunidade internacional de meditação, com cem centros no mundo inteiro, sendo conhecido por apresentar a prática da meditação de forma clara e acessível.

Amar o Mundo

No seu último livro, Amar o Mundo - A Viagem de um Monge pelos Bardos da Vida e da Morte (ed. Círculo de Leitores, "Temas e Debates", 2019), Mingyur Rinpoche partilha a experiência por que passou - e como a prática da meditação o ajudou -   quando deixou o mosteiro onde vivia para viajar, num retiro errante, pela Índia. Da contracapa:

Aos 36 anos, Yongey Mingyur Rinpoche era uma estrela em ascensão da sua geração de mestres  tibetanos e o abade respeitado de três mosteiros. Uma noite, sem dizer a ninguém, fugiu do mosteiro na Índia com o intuito de passar os quatro anos seguintes num retiro errante, vivendo como mendigo. O seu objetivo era despojar-se dos seus títulos e das suas funções de modo a explorar os aspetos mais profundos do seu ser.

Neste relato (...) Yongey Mingyur Rinpoche dá-nos a conhecer as lições que recolheu da sua experiência de quase morte. Partilhando connosco as práticas de meditação que o ajudaram, mostra-nos como podemos transformar o medo de morrer em alegria de viver.

Comprei este livro em 2020, pouco antes do início da pandemia. Em Fevereiro desse ano, inscrevi-me na Tergar e dei início ao curso Joy of Living, constituído por três níveis, de que ainda estou a frequentar o segundo. É um curso on line, que vamos fazendo ao nosso próprio ritmo, o que me permitiu verificar que o meu ritmo, por causa de todas as paragens fruto da minha indisciplina natural, é muito lento...

O que me inspirou a lançar-me neste curso, para aprender o mais possível sobre meditação e budismo tibetano, foi precisamente aquele gesto radical de Mingyur Rinpoche, de largar tudo e partir, de pegar na própria vida e pô-la ao serviço dos seus ideais e aspirações para o melhor e para o pior, até às últimas consequências. É esse mesmo gesto que ainda me anima hoje, como animou durante toda a pandemia (menos nas pausas que já referi), a levantar-me todas as manhãs cedo e sentar-me à frente do computador para as minhas aulas e as minhas sessões de meditação.

Agora de forma mais empenhada, já que comecei, no passado mês de Setembro, um outro curso on online da Tergar, The Heart of Tantra: Essence, a que se seguirá, já neste mês de Novembro, The Heart of Tantra: Immersion, que irá durar cerca de um ano - um curso muito mais específico, sobre o Tantra,  ou Budismo Vajrayana, e também mais difícil e exigente... e empolgante, como deixei ficar aqui, no meu último post.