Dia 20 - Uma fruta mordida
Naquela manhã, quando saí da cama e me pus a andar pela casa, vi que estava sozinha.
Fui à cozinha e em cima da mesa estava um prato fundo de plástico verde com um resto de corn-flakes e, ao lado, uma maçã mordida, com uma bela casca vermelha. Lembrei-me da Branca-de-Neve e da Bruxa-Má, mas foi apenas uma lembrança súbita e passageira - afinal, a Catarina já tinha doze anos e deixara de se entreter com esse tipo de histórias.
Abri a porta e fui ao alpendre e vi que a bicicleta também tinha desaparecido.
Se não conhecesse tão bem a minha filha teria ficado preocupada. Assim, fiquei só um pouco ansiosa por não saber onde é que ela estava, embora desconfiasse que ela devia ter acordado cedo e, farta de esperar que também eu acordasse, devia ter-se posto a caminho da casa da Carina - a amiga de S.João das Lampas com menos três ou quatro anos e uma sílaba no nome do que ela.
Tomei duche, vesti-me e saí. Fui direita à casa da Carina - e lá estavam as duas a brincar pacificamente, tornando o meu ralhete supérfluo e despropositado.
Tínhamos ido só as duas passar alguns dias das férias da Páscoa à casa que chamávamos "do Magoito", por causa da praia, mas que na verdade ficava a alguns quilómetros de distância, em S. João das Lampas, onde afinal passámos a maior parte do tempo porque o tempo não estava de feição para banhos. Mas a Catarina aproveitava plenamente esses dias, percorrendo velozmente na bicicleta vermelha os caminhos que atravessavam os campos.
Mesmo longe da praia sentia-se, estranhamente, a presença do oceano - não o víamos nem ouvíamos, mas sentíamos a sua proximidade numa particular qualidade do ar e sabíamos que estava lá. Eram "magníficos dias atlânticos" de sol, vento, poucas palavras e muitos gestos partilhados.
Às vezes íamos lanchar ao amplo café central, enormes fatias de bolo de chocolate com nozes. Pelo caminho, demorávamo-nos a ver, em silencio, as lagartixas que apareciam e corriam muito rápidas pelas pedras dos muros, debaixo do sol quente das tardes de verão.
Vivíamos nesses dias uma solidão muito livre, cúmplice e partilhada, de que a maçã mordida e abandonada na mesa da cozinha naquela manhã deserta restou na memória como o mais evidente sinal.