Dia 12 - Uma vista da janela
Dantes eram as árvores
As minhas vistas da janela incluíram-nas sempre, nas casas onde vivi. Primeiro, na infância povoada tanto pelas árvores majestosas da Alameda D. Afonso Henriques como pelas modestas e obscuras nespereiras do pátio interior do meu rés do chão, debaixo das quais os gatos vadios vinham dormir sestas aparentemente sem fim,
e agora, naquela que tem sido a minha casa das últimas décadas, também são sempre árvores o que vejo pela janela. Se olhar para a esquerda, vejo as que se alinham nos dois passeios da grande avenida que cruza a minha rua; se olhar para a direita, são as que se perfilam no horizonte distante, no meio dos montes.
Também nos percursos entre o meu subúrbio - Lisboa - o meu subúrbio, que muitas vezes faço de autocarro, têm sido sempre as árvores que vejo pela janela as grandes companheiras sobre quem descanso os olhos.
Uma janela para o mundo
É isto que me lembro de ouvir chamar à televisão quando era miúda.
No início do passado mês de Fevereiro, a artrose no meu joelho direito virou artrite inflamatória, com dores tão intensas que deixei de conseguir andar. Nos primeiros tempos fiquei confinada à cama. Atordoada pelas dores e pelos analgésicos, restava-me a televisão.
Quando me sentava na cama e olhava para a janela, tudo o que via eram 2/3 de parede branca do prédio em frente e 1/3 de céu azul.
Hoje, 27 de Maio de 2022, passam três dias depois dos três meses exatos sobre o início da guerra na Ucrânia. Lembro-me muito bem da véspera da invasão. Nesse dia 23 de Fevereiro, quando me sentei na cama e olhei para a janela, resplandecente do sol violento das duas da tarde, reparei que estava um dia anormalmente quente para o mês de Fevereiro.
Os dias que se seguiram foram passados às voltas com as imagens da guerra na televisão. Lembro-me muito bem de um dia em que chorei como um bebé com as dores que senti quando tentei andar, sem conseguir perceber se estava a chorar por mim ou pelos ucranianos, sobretudo as crianças, que via nas imagens. Acho que era por todos, por eles e por mim.
Atravessar a janela
Algumas semanas depois, tive um sonho fantástico. Sonhei que tinha saído pela janela e que fui descendo, desde o 9º andar onde moro até ao chão, com a maior calma e suavidade. Ainda hoje, se fechar os olhos e procurar lembrar-me, consigo sentir no corpo a mesma suavidade que senti nessa descida lenta, sempre na vertical - como se estivesse a andar - até pôr os pés ao de leve no passeio lá em baixo.
Ainda algumas semanas depois, pela Páscoa, ofereci à minha neta Sara, de seis anos, uma fada-que-voa. É uma bonequinha de cerca de 15 cm, ataviada de fada - com umas asas azuis transparentes e uma luz azul que se acende quando está ligada. Tem uma bateria que se carrega como se fosse um telemóvel e, quando se liga, pasme-se!, voa mesmo. Temos é de manter as mãos por baixo a uma curta distância, ou ela vai, desarvorada, bater em tudo o que encontra pelo caminho, nomeadamente móveis e paredes. Que foi o que aconteceu quando a experimentámos a primeira vez, por entre os gritos de excitação do mais novo, o Luisinho, de três anos.
Não sei se algum dia falarei à Sara de tudo isto. E se lhe direi que a fada-que-voa foi um presente tanto para ela como para mim, símbolo e celebração da vida mais profunda que circula silenciosamente em nós, como a seiva das árvores,