Dia 9 - Uma experiência triste
Para me reavivar a memória e escrever o post de hoje, recorri de novo à minha "Matéria Instável". Encontrei, ai!, vários relatos de experiências tristes, ou melhor, dado que eu sou sobretudo "lírica", a expressão de pensamentos e emoções de tristeza.
Escolhi um poema que escrevi há cerca de 15 anos, quando me encontrava numa fase de muita dor, tristeza, solidão, frustração... que felizmente passou, como fase que era. É sobre uma tristeza que se revolta e se rebela, uma tristeza politicamente incorreta, que barafusta e solta impropérios e palavrões. Uma tristeza de que não me envergonho, todos estes anos depois.
por entre os textos
Bem vinda talvez a lágrima
que me ameaça
com que ameaço voltar a sentir :
as cores, os cheiros, os ventos, as paisagens,
os céus de nuvens vermelhas,
ao mesmo tempo que se acendem as lâmpadas
dos candeeiros das ruas
e as luzes do café iluminam
os pretos suburbanos repetidos e conformados,
e que a televisão conformadora
cospe os seus barulhos sintéticos que gritam alto,
para não deixarem ouvir
os gritos reais,
os gritos, o grito,
(porra para isto tudo,
para esta desistência esta morte instalada
infiltrada)
enquanto te ouço, Whitman,
encostado à janela do autocarro
murmurar gritar em silêncio
muito alto: o vento sobre as folhas de erva
e saio do autocarro e entro
no café, esta vida de plástico,
o pronto a vestir
a usar, a deitar fora,
a ocultar
este engano repetido dia após dia.
As cervejas os bagaços,
faz de conta que já estamos todos cegos
surdos paralíticos,
mortos pelo mais hediondo dos suicídios,
mas não mudos. Usuários de vozes
também de plástico
só sabemos fazer barulho,
quanto mais alto melhor
e não há deuses que nos venham castigar
como nos tempos de Gilgamesh.
Podia correr para os bosques,
Whitman,
mas já não há bosques aqui,
as árvores que vejo são também elas um engano
e não passam dum enfeite exíguo
antes de mais prédios.
Inconsolável e a recusar consolo
como o choro na voz de Ferré
- Je suis d'un autre pays que le vôtre -
sei lá como é que se corre para os bosques,
hoje e aqui, Whitman,
só sei que ainda há vento
e folhas de erva que estremecem no vento,
a murmurar, a gritar
com a força dos murmúrios.
Entre um dia e outro
falta-me o dia
Whitman
falta-me a pergunta certa para perguntar
- como é que se corre hoje para os bosques?
onde é que está a estrada aberta
não só para mim,
tu já sabias que não é essa a questão,
onde é que está a estrada aberta para irmos,
nós,
porque o canto dos poetas às vezes está cheio de gente
e é a voz dos homens que se calam,
feita de murmúrios e de gritos
mas também do fôlego forte como um ímpeto
como um sopro como o vento,
únicos,
de ir embora pela grande estrada aberta.
É verdade, Ferré,
que nous n'avons plus rien d'épique
mas eu pergunto ainda por tua culpa
Whitman
como é que se corre hoje para os bosques,
por onde é que se entra
na grande estrada aberta?