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leitor ideal

leitor ideal

A música é uma presença fundamental na minha vida. Ouço música todo o dia quando estou em casa, a trabalhar, a ler, a fazer seja o que for. Geralmente  sintonizo a Antena 2 e ouço música clássica, mas não só - às vezes canso-me e sinto necessidade de algo mais "leve", ou preciso de me ligar às reminiscências dos meus verdes anos, quando a música que eu ouvia e de que gostava era tudo menos clássica.

Astor Piazzolla

Mas tenho gostos fixos. Uma mão-cheia de compositores, clássicos ou menos clássicos, que adoro. À cabeça vem Astor Piazzolla,  bandeonista e compositor do século XX.

Filho de pais italianos, Piazzolla nasceu em Mar del Plata, Argentina, em 11 de Março de 1921, vindo a falecer em 1992, em Buenos Aires. 

 

Aos quatro anos foi com a família viver em Nova York, onde iniciou o seu interesse pela música. Em 1929 recebeu do pai o primeiro bandoneón  e em 1933 começou a ter aulas de piano com Bela Wilde, um pianista húngaro discípulo de Sergei Rachmaninoff. Foi em Nova York que o jovem Astor conheceu o cantor argentino de tango Carlos Gardel, que estava na cidade para rodar o filme El Día Que me Quieras, em que ele atuou como um miúdo entregador de jornais. Estudou também teoria harmónica e contraponto tradicional com a compositora e diretora de orquestra francesa Nadia Boulanger.

É hoje considerado o compositor de tango mais importante da segunda metade do século XX, mas, ironicamente, quando começou a introduzir inovações no tango tradicional, em termos de ritmo, timbre e harmonia, foi muito criticado pelos mais ortodoxos. A sua música apresenta caraterísticas absolutamente únicas, dado que se situa no cruzamento das influências clássicas, absorvidas através da sua formação, com o jazz dos seus tempos de Nova York e o tango tradicional argentino.

As suas composições mais famosas são Libertango, constantemente tocada por orquestras de todo mundo, e Adiós  Nonino, feita em homenagem ao pai, quando este, Vicente "Nonino" Piazzolla, se encontrava no seu leito de morte, em 1959.

Adiós Nonino: o amor, a dor da perda, o amor outra vez

A melhor arte, neste caso a melhor música, é sobre todos e cada um de nós.

Adiós Nonino sou também eu, com 18 anos, a descobrir e a perceber claramente, nessa aterradora primeira vez, que a minha mãe que acabara de morrer nunca mais, nunca mais, nunca mais ia voltar. Nunca mais iria vê-la olhar, falar, andar, nunca mais a iria sentir respirar. Nunca mais  iria vê-la viver.

Adiós Nonino foi a dor desses momentos e dos que se lhes seguiram: a dor da orfandade, da perda daquela ou daquele de quem nascemos, esse rasgão definitivo no tecido da vida.

E é, também e misteriosamente, a celebração do amor que gera a própria dor e insiste em renascer, uma e outra vez, depois dela. 

 

Não me lembro de ter tido sonhos recorrentes ao longo da minha já longa (passe o semi-pleonasmo) vida, a não ser, curiosamente, nos últimos anos. Talvez porque há anos que tenho vindo a mudar, uma mudança lenta mas implacável, imposta pela própria vida. Ou por qualquer outra razão que desconheço, já que este é território dos mais estranhos e misteriosos. Mas, seja como for, acho que deve ser por alguma causa associada a esta mudança e à ansiedade que ela provoca.

Aquele que era o meu sonho recorrente até há dois ou três anos transformou-se noutro, bastante parecido, mas com um conteúdo diferente.

No entanto, creio que ambos têm que ver com

Novas Oportunidades

Não, não são as "novas oportunidades" do engenheiro José Sócrates, programa acusado de facilitista e classificado mesmo, por Medina Carreira, como "uma trafulhice de A a Z, uma aldrabice". Apesar de não saber praticamente nada sobre o mecanismo dos sonhos, numa coisa acredito: que eles não aldrabam.

Os meus sonhos recorrentes são sobre autocarros. Na primeira versão, caminho, ao lusco-fusco (não tenho a certeza, mas acho que é ao anoitecer) por uma longa rua, no fim da qual está um autocarro parado. Não sei se está à minha espera, ou se está simplesmente à espera que sejam horas para arrancar, como às vezes acontece com os transportes. Vou-me aproximando dele, ele não sai do sítio  - e pronto. O sonho acaba aqui, sem qualquer emoção em particular, a não ser uma incerteza e uma leve angústia sobre o que irá acontecer. Será que o autocarro vai arrancar sem mim? ou será que consigo chegar antes? Devo correr ou, se continuar ao meu ritmo normal, consigo apanhá-lo nas mesma?

Na segunda versão, a mais recente, estou a andar numa rua movimentada de Lisboa (acho que fica para os lados do Marquês, Rua Braancamp, Rato) e tenho de ir apanhar um autocarro. Passa um por mim, mas não sei se é o que eu quero apanhar, ou outro. Só sei que caminho na direção da paragem e que, se não apanhar este autocarro, hei-de apanhar outro: não estou com pressa.

Depois, de repente, estou num café-restaurante num centro comercial. Estou de saída e vou comprar uma raspadinha, porque sei dum sítio onde as vendem (confesso: eu às vezes compro uma raspadinha). Também este sonho acaba antes que eu compre a raspadinha e me habilite a ganhar algum prémio.

O que os dois sonhos têm em comum é o ambiente de lusco-fusco em que decorrem e o facto de eu perguntar aos meus botões, ainda mais alegóricos que de costume, que raio estou a fazer outra vez no mesmo sonho. Talvez a minha prática de meditação esteja a ter resultados de que eu não estava à espera.

Os objetos que mais povoam o meu quotidiano, além do computador e do telemóvel,  são os livros, as canetas, os blocos e cadernos de apontamentos... mas o que mais se destaca, porque é com ele que começo o dia, é

A minha caneca do café

É a caneca do café e não a caneca de café, porque se destina exclusivamente a esta bebida milagrosa (de que acabei de dar um gole neste preciso momento). É grande, alta, de formas arredondadas e mais larga em cima do que em baixo, tem a magnífica cor do café e, em beige, a inscrição "É hora do (em maiúsculas de letra de imprensa) Café (em letra que podia ser manuscrita, num estilo mais livre, caprichoso até).

De manhã, logo depois de me levantar e ir à casa de banho, encho-a com o café que tenho guardado no frigorífico , um humilde e inofensivo café doméstico de cafeteira, e ponho-a a aquecer no micro ondas. Depois trago-a para o meu quarto e ponho-a em cima da secretária do computador, entre mim e o monitor.

Quase todos os dias. Mas há dias, poucos, quase raros, em que não é assim e mais adiante explico porquê.

Durante a pandemia, tive dias, sobretudo durante os confinamentos, em que o meu consumo de café se limitava ao café caseiro que eu bebia, e bebo, da minha caneca. Ao princípio custou-me passar sem as bicas diárias, mas a gente habitua-se a tudo e agora até tenho dias em que saio e não bebo café nos cafés (noto também que passei a sair menos depois da pandemia. Trabalho em casa e também a sair pouco me habituei. Às vezes até penso, com uma espécie de susto no estômago, que se calhar me vim a tornar agorafóbica. Como a Sinead O'Connor, vi nas notícias do sapo há tempos).

A par do incremento do hábito do café caseiro, com a pandemia desenvolvi também o hábito de meditar. Em Fevereiro de 2020, parecia eu que estava a adivinhar que o covid estava a chegar, iniciei um curso de meditação tibetana on line: "Joy of Living", da associação Tergar, presidida pelo Yongey Mingyur Rinpoche. E continuo até hoje - tenho mesmo de continuar porque avanço devagar, são 3 níveis e ainda só estou no primeiro, embora já esteja quase no fim.

Então, o que eu faço habitualmente de manhã é colocar a caneca do café sobre a secretária do computador, entre mim e o monitor, como já contei, e assistir à minha aula de meditação, com vídeos e textos - tenho acesso aos conteúdos que quiser, quando quiser - e praticar os meus 20 minutos de meditação, que devia ser diária, mas ainda é só quase.

E isto é assim por causa da liberdade.

Tenho a liberdade de começar os meus dias assim. Mas também tenho a liberdade de não o fazer. Claro que os resultados das duas opções são diferentes (se eu começasse todos os dias assim, provavelmente já estava quase no final do curso. Talvez até já tivesse alcançado a iluminação. Assim, não.)

A este propósito, lembrei-me dum poema do Fernando Pessoa, que fui buscar à internet:

"Liberdade

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada,

O sol doira

Sem literatura.

 

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como tem tempo não tem pressa...

...

 

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

..."

 

Não cumprir um dever é um prazer muito especial  (é ambíguo: é bom e é mau) do exercício da liberdade. Faço, porém, uma ressalva, quase uma penitência:  O caso da meditação é diferente, talvez seja mesmo um caso à parte - precisamente porque, através da prática, recuperamos uma certa infância, uma infância Iluminada, então o melhor mesmo é praticá-la o mais regularmente possível.

Independentemente das contas que tenho de ajustar com a minha ideia e a minha prática da liberdade, o mais importante é que, enquanto em comparecer ao encontro diário com a minha caneca do café, basicamente, como se diz agora, está tudo bem.