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leitor ideal

leitor ideal

Não sei se o Luís Filipe foi o meu primeiro amor, mas foi o meu primeiro namorado.

Foi o amor dos meus 17 anos, absoluto e sem limites como o amor só pode ser quando se tem 17 anos. O namoro só durou 6 meses, mas ensinou-me que quando aprendemos a intimidade com alguém estamos também a aprender a intimidade connosco próprios. As marcas da minha intimidade com ele ficaram para toda a vida - e as marcas da intimidade comigo própria renovam-se a cada dia. Fica a minha gratidão, a minha homenagem e, ainda, o meu amor, neste poema que escrevi há alguns anos e que é, também ainda, um eco desse amor que em tempo dos calendários durou uma primavera e um verão e em mim ficou, arrisco-me a dizer, para sempre.

 

Andanças pelo meu amor que morreu jovem

Ofereço-me à passagem vagarosa

das inclinações diferentes do sol e da sombra,

à lenta cintilação dos minutos

como à passagem do teu olhar sobre mim,

como às tuas mãos.

Incendeiam-se os dias na margem

onde os olhos permanecem secos,

fixos no ponto donde o teu corpo se soltou.

Estátua de ser eu sob o sol

das ruas,

recuso regressar ao país do início

da loucura,

donde me sorris ainda

suspenso por cima do tempo

e parto para dentro da cidade

que nunca me espera

mas onde me reabito.

 

Piso a frincha da porta entreaberta da infância,

limiar que volto a transpor

sobre um perfume

ou um fim de tarde

ou um canto de pássaros,

ou o pomar onde se beijou

a espessura demorada e tenra dos frutos

dum arbusto, equivalente do amor, rente ao chão,

e onde percorro o eixo da suave inclinação da luz,

no seu longo beijo das rosas solitárias,

com os olhos alagados de dia.

 

Poeta como tu, ciganos, e por momentos também

imóveis no gesto

entre a palavra e o dia.

                   mas hoje, nesta tarde de outubro,

                   o nosso retrato empalidece durante o crescimento da lua:

 

Subterrâneo o ritmo dos cavalos

que me trotam no sangue,

 abrindo o caminho da bravura e do poema.

Quando me deparei com o tema de hoje, veio-me espontaneamente à memória um poema que faz parte da minha coletânea "Matéria Instável" e que escrevi já há mais de dez anos.

Foi escrito numa fase muito dura da minha vida, um tempo de muita dor e solidão. E escrevi-o no momento em que decidi aceitar toda a dor e toda a solidão, porque era tudo o que a minha vida era naquela altura. Há alturas em que aquilo que sentimos é tão intenso e avassalador, é tão tudo o que há, que não queremos entrar em explicações  nem em narrativas, mas apenas dizê-lo, e foi numa altura dessas que escrevi este poema:

SOL

Alonga-se doce a luz do começo da tarde de novembro

sobre os dedos.

Alquimia de sons e desenhos de sol

no espaço do quarto,

desígnios de tempo suspenso

entre o passado e o futuro.

 

que gesto surpreenderá a virgindade do presente

e será como o amor um presente de espanto?

 

Um caminho de coragem aberto no peito.

 

Curiosamente, encontrei uma citação do mestre zen Dogen no livro que ontem acabei de ler (Budismo Zen - A Meditação Zen e os Preceitos do Bodisatva, de Reb Anderson), que diz exatamente o mesmo.

"Na turbulência das nossas vidas em mudança, com as suas ondas de dor e prazer, é difícil permanecer em silêncio e imóvel. Mas como Dogen afirma: 'Aqui é o lugar; é aqui que o caminho se desenrola'. Sem qualquer interferência ou manipulação do que está a acontecer, o caminho da libertação do sofrimento desenrola-se aqui."

É exatamente verdade, mas nesse momento eu não sabia -  e só vim a sabê-lo de verdade vários anos mais tarde,  depois de viver repetidos momentos assim. Mas, mesmo sem o saber, o momento da escrita deste curto poema marcou o início de todo o caminho que tenho vindo a percorrer.

 

Quando era pequena, costumava passar parte das férias de verão na praia de Santa Cruz. Todos os anos sentia a mesma inquietação, mal o verão se instalava no calendário e no sabor dos dias - era como se o mar me chamasse para ir ao seu encontro.

Não só o mar: Santa Cruz era a imensidão de tudo. O areal, as arribas, os penhascos, os chorões, o céu, visitado de vez em quando por uma ou outra avioneta que descolava ou aterrava no aeródromo - e como era feliz o ruído das avionetas!: como uma música de férias de verão.

Mas sobretudo o mar, ou melhor, o Atlântico. Em Santa Cruz, o som do mar é omnipresente, é uma música de fundo que mistura com o silêncio. Este apelo do mar, da música do mar sobre o silêncio sempre, da imensidão dos horizontes, do céu e da terra, foi sentido por vários poetas. Dos desconhecidos, obviamente não se sabe nada. Mas sabe-se que por lá passaram e ficaram, em estadas mais ou menos prolongadas, Antero de Quental ( 1842 - 1891), João de Barros (1881 - 1960) e, já nos anos 70 do século XX, o japonês Kazuo Dan (1912 - 1976).

Existem em Santa Cruz  três monumentos, cada um dedicado a um destes poetas e, em Junho de 2016, foi inaugurado um percurso oficial - o "Passeio dos Poetas" - que atravessa locais relacionados com a sua presença na vila e dá a conhecer alguns dos seus poemas.

Santa Cruz é, assim, uma espécie de epítome de Portugal - país - de - poetas. De facto, foi porventura aqui que, ainda mesmo na infância, me nasceu o amor da contemplação, da poesia e da literatura, com a aprendizagem do silêncio, da solidão e da  liberdade dos amplos espaços na natureza.

Embora aqui tenha vivido as experiências mais marcantes, esta aprendizagem foi feita noutros sítios do Oeste, onde viviam a minha avó e as irmãs da minha mãe: o Varatojo, casa da minha avó, a 2,5 km de Torres Vedras e S. Mamede da Ventosa, a cerca de 5 km, onde aprendi o sentido de aldeia e de comunidade, do cheiro da terra (a casa da minha tia Carmo cheirava sempre a maçãs), dos ciclos naturais das estações, dos meses e dos dias.

Santa Cruz fica a cerca de 16 Km de Torres Vedras, sede de concelho.

Na minha infância, Torres Vedras ainda era só uma vila e os habitantes que permaneciam em Santa Cruz durante o ano todo não passavam de 200, apenas chegando aos 20 mil durante o verão. Nas palavras de Kazuo Dan: "Visto que se tratava de férias especialmente concedidas por Deus, não havia dúvidas de que o melhor seria desfrutá-las em um lugar desprovido de quaisquer distúrbios, onde se permitisse uma interação profunda do meu ser com o Céu e a Terra.

Para isso, a praia de Santa Cruz era simplesmente perfeita, sem igual.

E nessa interação havia o acompanhamento melódico e ininterrupto das ondas do mar."

 

Dou hoje início à minha resposta ao desafio de escrita de que falei no último post.  É um desafio de 30 dias de escrita consecutiva, que se desenrola assim:

1. Uma memória feliz                                        16. Um desafio empolgante

2. Um lugar querido                                           17. Um gesto inspirador

3. Um momento de coragem                           18. Uma pergunta intrigante  

4. Uma pessoa amada                                       19. Uma tarde de domingo

5. Um objeto quotidiano                                    20. Uma fruta mordida

6. Um sonho recorrente                                     21. Um sopro de esperança

7. Uma música favorita                                        22. Uma discussão boba

8. Um rito de passagem                                     23. Um prazer inenarrável

9. Uma experiência triste                                   24. Uma caminhada curiosa

10. Uma descoberta infantil                              25. Um adormecer tranquilo

11. Uma nuvem no céu                                       26. Uma obra de arte

12. Uma vista da janela                                       27. Um equívoco consertado

13. Um animal de estimação                              28. Uma esquina marcante

14. Uma previsão do futuro                                 29. Um beijo de amor

15. Um medo forte                                                 30. Uma metáfora para a vida

Se calhar há temas que não me vão inspirar e eu nem sequer saberei o que dizer acerca deles, mas assumo o desafio e comprometo-me a escrever sobre cada um deles, mesmo que acabe por escrever sobre outra coisa qualquer (faz-me lembrar os cursos de escrita criativa que fiz: nunca se sabe o que vai acontecer) e  mesmo que isso me cause algum desconforto - se fosse confortável não era um desafio.

Vou então começar hoje, com

O pacto com as buganvílias

Estamos em meados de outubro, o que me recorda os primeiros dias de outubro dos meus anos no liceu (eu sou antiga, naquele tempo ainda não era "escola secundária", era liceu). Eram dias de profunda magia, porque eram dias de retorno e de re-começo, ainda o mês eram jovem e fresco e trazia agarradas aos cabelos-raio-de-sol as reminiscências de sal e vento de todo o verão que o antecedera.

Eram dias de entusiasmo pelo reencontro com as colegas e os amigos (sou mesmo antiga: no liceu eram mesmo só as amigas, no café da esquina da Guerra Junqueiro com a Alameda é que eram os amigos), pelos livros e cadernos novos, pelas novas rotinas - e também já de alguma nostalgia pela liberdade irrestrita do verão, entretanto perdida.

Por isso eu ansiava pelo "intervalo grande", o intervalo de 20 minutos a meio da manhã que nos dava tempo de descer até ao pátio e andar a passos largos e correr e falar mais alto do que entre as paredes dos imensos corredores ou das salas de aula. Era essa a permissão que o ar livre nos dava.

O pátio era enorme, quadrangular e com um chão de alcatrão cinzento. Não teria portanto nada de especial, não fora a profusão de buganvílias que se estendia sobre a cobertura. Buganvílias em ramadas densas, cor de rosa quase-choque, como gritos de alegria sobre a monotonia amarelada e velha das paredes. Buganvílias que viviam ainda no começo do outono e que, como um perfume que eu sorvia sofregamente, não só me recordavam as cores e a liberdade perdida do verão como me propiciavam um breve reencontro com elas.

Foi com as buganvílias-de-outubro-do-liceu que aprendi a perceber os rituais que a natureza encena para a mudança das estações e a amar a própria mudança - e o eterno retorno de todas as coisas. Tenho muitas memórias, felizes e infelizes, mas, das felizes, as nossas melhores memórias são aquelas que podemos ciclicamente reatualizar, num convite ao retorno da alegria e da esperança.